O ROMANCE DA FASE HERÓICA


“Vislumbra-se, com esses autores paulistas em destaque, o novo universo paulista em geral, como paulistano em particular, ou seja, do nível rural ao urbano predominante. Qualquer que tenha sido o ponto de partida, prosseguia-se, sem prejuízo de outros aspectos, no sentido das interpenetrações e dependências de uma temática de observação, análise e reflexão: das ‘cidades mortas’ do Vale do Paraíba, às novas regiões invadidas pelo café – ou de agropecuária já transformada pelo imigrante, além da industrialização urbana, a cosmopolitização da cidade de São Paulo e as primeiras lutas de conscientização do operariado. Da visão paulista totalizada, chegava-se, por inferências, implícitas ou explicitas, ao sentido de brasilidade, ainda que seja sempre a visão paulista e paulistana o objetivo imediato, intencionalmente pesquisado.” (CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade. São Paulo: EDUSP, 1999, v. 2, p.209-210)

            Destacarei nesse parte o Manifesto Pau Brasil, inaugurado por Oswald de Andrade no ano de 1924. Trata-se de um manifesto elaborado em tom de paródia e de festa, pautada por aforismos. Oswald expressa nesse manifesto sua vontade de que a literatura no Brasil passe a ser uma literatura de exportação, assim como foi a primeira riqueza do país, daí a origem do nome do manifesto: Pau Brasil.

Manifesto Pau Brasil
 A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do espírito.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
(OSWALD DE ANDRADE; Correio da manhã, 18 de março de 1924)

            Esse Manifesto se recobriu de um caráter primitivista, assumiu os contrastes históricos  e culturais que a população do país foi submetida.
A Poesia “Pau Brasil” é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de atelier da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “Pau Brasil”.(PRADO, Paulo. Critica ao livro de Pau Brasil, de Oswald de Andrade).
            Mais tarde esse Manifesto se transformou em um livro de poemas com o mesmo nome: Pau Brasil. Esses poemas se caracterizam por descrever a paisagem brasileira, cenas do cotidiano, além de poemas metalingüísticos (poesia sobre poesia). Apresentam Verso livre, tom d prosa, linguagem simples “extrema condensação”.
“Ele sugere a idéia da poesia como ingenuidade, surpresa, e também imaginação, invenção, magia, liberdade, na medida em que é associada ao universo infantil: um universo sem fronteiras entre sonho e realidade, um universo poético, portanto, que pode ensinar ao adulto, talvez não exatamente a descoberta, mas a redescoberta da poesia”. (www.pobrevirtual.com.br).

Antônio Cândido em um estudo sobre Oswald, disse que ele havia sido o “inaugurador da transposição de técnicas de cinema para o texto brasileiro.”
            Como dito anteriormente, Oswald desejava que a poesia brasileira fosse poesia de exportação, e há em “Poesia Pau Brasil” um poema que expressa esse desejo do autor, trata-se de “Relicário” - No baile da corte/ Foi o conde d'Eu quem disse Pra Dona Benvinda/ Que farinha de Suruí /Pinga de Parati/ Fumo de Baependi / É comê bebê pitá e caí. (Oswald de Andrade - Pau-Brasil).
                Outro poema de grande valia no livro “Pau Brasil”,  é o poema em que Oswald faz uma paródia da “Canção do Exílio”  de Gonçalves Dias:  ”Canção de Regresso à Pátria” –  Minha terra tem palmares/ Onde gorjeia o mar/ Os passarinhos daqui/ Não cantam como os de lá/ Minha terra tem mais rosas/ E quase que mais amores/ Minha terra tem mais ouro/ Minha terra tem mais terra/ Ouro terra amor e rosas/ Eu quero tudo de lá/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que eu volte para lá/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que eu volte para São Paulo/ Sem que eu veja a rua 15/ E o progresso de São Paulo. (Oswald de Andrade - Pau-Brasil).
                A troca das palavras (palmeiras – palmares) demonstra um ar nacionalista, referindo-se aos problemas encontrados no país (escravidão, opressão e dominação). É observável também o uso de uma linguagem simples, sem rodeios. Foi uma forma de reverter o significado do texto original de forma paródica, irônica.
Com o Manifesto e o livro Pau Brasil surgiram um novo conceito de nacionalismo e um tratamento de vanguarda em relação à linguagem: um programa e uma prática de recuperação de materiais desprezados e esquecidos da nossa tradição lírica e de fixação, com simplicidade, dos fatos poéticos da nacionalidade” (Ensaio sobre Pau Brasil e Memórias Sentimentais de João Miramar).

Muitos críticos da época (Tristão de Athaíde, Afonso Arinos, Martins de Almeida)2 julgaram esse novo projeto poético “pela falta de lirismo e acentuado formalismo.”, em resposta, Oswald disse: “o que desconcertava meus adversários é que minha literatura fugia ao padrão cretino então dominante. E chamavam a isso de ‘Piada’[...]”3.
Oswald descobriu o Brasil longe daqui, ele percebeu a grandiosidade do país, com todas as suas riquezas desprezadas, com seu “ufanismo na literatice”4. Organizou um movimento em prol de assuntos e questões nacionais em geral. Partia de problemas políticos às riquezas inexploradas do país.














 

2 ARINOS, Afonso. Revista do Brasil, São Paulo, 30 set. 1926. ALMEIDA, Martins Pau Brasil A noite. 17 de dez. 1925. In: Marta R. Batista e org. op. Cit. P. 245 – 7. ATHAÍDE,Tristão. Poesia Pau Brasil. O Mundo literário, Rio de Janeiro, 4(40): 95 – 7, 5 de ago. 1925.
3  Oswald fala a posteridade. Entrevista ao Quincas Borba, São Paulo, 2(5): 1-2, jan. 1955.
4 PRADO, Paulo. O momento. Revista do Brasil, São Paulo, 25(100): 289-90, abr. 1924.

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