Narradores de Javé

Este trabalho tem como finalidade aplicar os conceitos e teorias aprendidos no decorrer do curso de semântica na análise do roteiro de “Narradores de Javé”, filme brasileiro de 2003, dirigido por Eliane Café e Alberto de Abreu.



1. O que Pietroforte e Lopes afirmam sobre a semântica é que ela não pode ser considerada apenas um elo entre palavras, conceitos e coisas. Não há como relacionar uma palavra a uma imagem, um objeto fixo. Sendo a semântica o estudo do sentido das línguas e a linguagem, por sua vez, sendo a fala humana e por esse motivo, permeada dos atos e da retórica humana, fica inconcebível aceitar a palavra como sendo uma representação invariável e absoluta de uma coisa. O exemplo do arco-íris, dado pelos autores, mostra que a maneira de ver um mesmo fenômeno da natureza de uma cultura para outra varia não somente a imagem como o conceito.
Não se pode dizer que a linguagem é de acesso a todos independente da sua situação sócio-histórica ou cultural. Dizer que a estruturação do mundo em categorias depende dos deferentes pontos de vista é o mais próximo da realidade. Pessoas com situações econômicas diferentes, de idades deferentes, terão visões distintas de um mesmo fato, de um mesmo mundo. E é esse fato que torna a semântica peculiar. No filme há uma cena que exemplifica essa vertente claramente:


“DEODORA
- Pois é, era guerra contra a coroa. Mas o fato é que a nossa gente saiu fugida...
Agora quem interfere é Vado, que surge apoiado na porta.
VADO
- Fugida não, senhora! Eles saíram e retirada.
DEODORA
- E não é a mesma coisa?
VADO
- Não é não! Fugido é quando os homens dão as costas pro inimigo e saem correndo, acorvadado. Retirada é diferente; aí os homens vão saindo de marcha-ré, devagarinho, mas com a cara voltada de frente pro inimigo!”.(p.66-67)

Nesse trecho podemos perceber uma diferença na concepção da palavra “fugido”. Enquanto que para Deodora “se retirar” e “fugir” são sinônimos, para Vado há uma diferença entre as duas palavras de acordo com o contexto. Dentro do sistema lexical, as palavras exercem relações entre si. Exemplificaremos essas relações com fragmentos de “Narradores de Javé”.

Sinonímia – dois termos são sinônimos quando podem substituir um ao outro dentro de um contexto sem alterar o significado. Não existem sinônimos perfeitos, quanto mais no que diz respeito ao emprego discursivo dos mesmos. Uma palavra pode ser mais agressiva que a outra, por exemplo, bater/espancar. Isso ocorre porque o discurso é permeado pela retórica do enunciador, e este tanto pode fazer sinônimos de palavras que originalmente não são ou até mesmo desfazê-los.

“... guiava o bando, mas nenhum lugar parecia prestar para assentar sua gente.” (p.70)
Nesta frase podemos trocar o bando por sua gente sem alterar o sentido da frase.

Antonímia – dois termos são antônimos quando se opõem pelo significado. Da mesma forma que os sinônimos não são absolutamente iguais, os antônimos não são completamente o oposto. Uma mesma palavra pode ter vários antônimos dependendo do seu significado. O discurso também vai interferir na aplicação do antônimo, dependendo da avaliação e da percepção do enunciador e do contexto em que aparece.

“- Mariadina desapareceu por um dia e uma noite” (p.72)
Aqui aparecem dia e noite que são oposições polares.

Hiperonímia – Uma palavra que apresenta um sentido mais geral em relação a outras de significado mais restrito.
Hiponímia – Palavras de significado mais restrito em relação aos hiperônimos.

“- Era guerra contra a coroa; o Rei de Portugal queria as terras porque tinha ouro.” (p.66)
No exemplo acima a coroa é o hiperônimo que engloba o hipônimo o Rei de Portugal.

Homonímia – dois termos são homônimos quando possuem mesmo significantes, mas diferentes significados. Exemplo: manga da camisa e manga fruta.

Paranomásia – Palavras que têm significados diferentes, mas aproximam-se pelo som e pela grafia. Dentro da literatura podem aparecer algumas paranomásias criadas pelos autores, como no exemplo dado por Pietroforte e Lopes. Exemplo: imergir (mergulhar) e emergir (vir á tona).
Polissemia – Ao contrário da homonímia e da paranomásia que dizem, respectivamente, respeito a identidades e semelhanças entre suas imagens acústicas, palavras polissêmicas são as que possuem vários significados para um mesmo significante e só o contexto permite identificá-los. Exemplo: curso de letras e curso do rio.
2. a) O significado, para a Semântica Formal, segundo Müller e Viotti, é entendido como um relação entre a linguagem e aquilo sobre o que ela fala. Se não se pode confirmar a veracidade das condições em que ocorre certa sentença, não podemos conhecer seu sentido, ou seja, não é necessário saber se ela ocorre ou não, mas sim se há condições para que ela seja real. Assim sendo, a Semântica Formal baseia-se numa interatividade entre a linguagem e o mundo.
Cada parte da sentença contribui para que ela possua um significado, para que possa seja provada suas condições de realização. Também é necessário atentar para a estrutura gramatical na constituição do significado de uma sentença.
A referencia e a denotação vão muito além da representação de um indivíduo no mundo, sendo estendidas a outros “mundos”. Elas devem ser entendidas também como a representação não somente das propriedades, bem como, das relações entre propriedades.
Para exemplificar essas noções, será usado um trecho de “Narradores de Javé”:
“ – Mariadina desapareceu por um dia e uma noite...”(p.72)
Se pudéssemos afirmar que Mariadina havia desaparecido a sentença seria verdadeira, pois corresponderia fielmente a um fato ocorrido. Este enunciado estaria então ligado ao mundo. Não há como saber se a sentença é verdadeira ou não. Mas se houverem condições para que tal aconteça, partimos do pressuposto de que é verídica. Muitas coisas poderiam ter ocorrido com Mariadina.
b) Dentre as relações entre sentenças se encontra a Pressuposição. A pressuposição é um senso comum, uma idéia óbvia que uma sentença acarreta. Exemplo:
“ – O fato é que tem muita gente aqui que não dá crédito a Mariadina só porque era mulher. Mas foi ela mesmo que cantou as divisas de Javé...” (p.69)
Quando Deodora diz isso ela pressupõe que Javé teve as divisas cantadas e que todos os seus ouvintes sabem desse fato. Isso realmente ocorre na cena em que se passa na sua casa. Mas na outra cena em que o Narrador conta a história num bar ocorre uma quebra de expectativa e o locutor se vê obrigado a explicar o que seria cantar as divisas.
A Paráfrase é a relação de sinonímia entre as sentenças e tal como entre os sinônimos e antônimos, a semelhança entre as sentenças nunca é total. Exemplo:
“Esse comecinho, Seu Vicentino já contou”.(p.68)
Seu Vicentino já contou esse comecinho.
Perceba que há uma sutil diferença entre as sentenças. Na primeira o que está em evidencia é que o comecinho já foi contado. Na segunda destaca-se o fato de que foi Seu Vicentino que contou o começo da história.
Quando dois enunciados têm sentidos incompatíveis dentro de uma mesma situação chamamos de Contradição, que está liga ao acarretamento e a sinonímia. É claro que no nível do discurso a contradição pode existir dependendo da interpretação dada.
“- Nóis somo gente guerreira, gloriosa, que saímo fugido...” (p.79)
A contradição aqui está em como uma “gente guerreira” foge de uma guerra. Mas isso é explicado pelo contexto de que eles teriam se retirado e não fugido, como já foi dito anteriormente.


Essa foi uma breve análise do roteiro de “Narradores de Javé”, passando pelas noções de Semântica Formal e Semântica Lexical, bem como analisando e exemplificando as relações entre palavras e sentenças.

Comentários

Postagens mais visitadas